quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O ENIGMA FUNDAMENTAL

    

Na nossa mais remota existência, como pequenos perversos e habitantes de um mundo de pensamentos imperfeitos e de vastas emoções, tramamos cometer dois terríveis crimes, que permaneceram registrados em nosso inconsciente, não porque eram importantes, mas são importantes porque permaneceram.
Tratam-se de desejos relacionados com o parricídio e com o incesto, cientificamente comprovados  pela práxis da clinica psicanalítica  e da ciência do inconsciente.
Essas experiências vividas inconscientemente pela criança, certamente não foram concretizada por impossibilidade de um frágil SER totalmente impotente. Por isso mesmo, não passaram de desejos de amor e ódio que devotamos aos nossos pais (não necessariamente aos pais biológicos), mas que determinam os nossos desígnios conscientes, bem como a força motriz que balizam os nossos destinos.
A nossa verdade, ou melhor, a verdade do desejo inconsciente é sempre um enigma a ser decifrado. No enigma, a verdade e o engano são complementares e não excludentes. A questão fundamental, na ótica da psicanálise, reside no fato de que somos dois sujeitos um dos quais nos é inteiramente desconhecido. Os nossos desígnios conscientes não são capazes de elucidar os enigmas presentes em nosso inconsciente, portador de uma forte carga afetiva muito poderosa e indelével, que norteiam os nossos destinos. 
Na clinica psicanalítica quem descobre os crimes é o próprio paciente, necessariamente pela relação transferencial com o analista. É fato que ninguém transforma ninguém, mas consegue transformar a si mesmo com a ajuda de outros, especialmente os profissionais da área da saúde mental..
Mas, trata-se de um processo longo e sinuoso na relação entre paciente e analista, denominada função transferencial,ao mesmo tempo em que revela a verdade do sujeito também a produz. Uma das propriedades de tal relação é a impressão de que o desejo do paciente é uma crença equivocada de que há um suposto saber do analista, não se tratando de algo já pronto e acabado, mas ela é, também, produtora do desejo.
Os especialistas da área consideram que só pode existir desejo do paciente a partir da clínica analítica e que não há desejo inconsciente antes do inicio da analise demandada pelo analisando. Isso pode patentear a condição humana de dependência de um Outro (Grande Outro) que garantiu a nossa sobrevivência e nos salvou do desamparo fundamental.
Nós, humanos, nascemos biologicamente incompletos e desprovidos dos instintos naturais, que guiam os outros animais. De início, nada dependeu de nós para depois tudo depender de nós.
Essa verdade fundamental que se manifesta no nosso cotidiano, não nos remete diretamente a ela, pois não se trata de uma verdade desvelada, mas dissimulada e distorcida. Trata-se, pois, de um enigma a ser decifrado. A teoria e prática da decifração constitui o objetivo da psicanálise. Claro que existem outras teorias e metodologias com tal objetivo.
Agora, cabe uma importante questão que deve ser formulada: por que nos sentimos culpados daquilo que não cometemos? E ainda mais: para esses crimes imaginários: por que a existência de tantas teorias e práticas voltadas para a decifração da nossa verdade inconsciente?
Interessante é que em nossa consciência não há traços desses desejos mencionados, mas seus efeitos perduram por toda vida. Por essa razão, o inconsciente é a nossa verdade, que funciona como indícios de algo desconhecido por nós mesmos.
No percurso de uma análise clínica não há receituário para a cura. É o próprio paciente que apresenta indicações equivocadas, daí as intervenções do analista na busca de desfazer as ambiguidades, não para eliminá-las, por ser impossível, mas no sentido de aliviar os sintomas e facilitar a continuidade do processo de cura do paciente. Interessante é que a ambiguidade está ligada à verdade do sujeito de forma necessária e não no sentido oposto. Somos nós que construímos e desatamos nós.
O caráter indicial de nossa historia oculta aponta para um passado arcaico e pelo que são em si mesmo. Essa persistência, por se manifestar mascarada pelos sintomas, não é devido a importância desses registros, mas possivelmente pela sua desimportância. Os fatos minúsculos é que são portadores dos desejos inconscientes e não os grandes acontecimentos de nossas vidas. Não devemos tentar simplificar as questões complexas e sim lidar com as complexidades de forma simples. Assim, o psicanalista opera como suspeito e não com boa fé.
Como a verdade resiste à significação, mas não cessa de insinuar sua emergência, o inconsciente teima em se ocultar e só se oferece dissimuladamente em nossos sonhos e nas lacunas do nosso discurso consciente. Um dos pontos fundamentais da verdade psicanalítica é que ela só pode ser obtida recorrentemente, a partir do lugar definido pela relação transferencial analista / analisando que a verdade do desejo pode emergir. O inconsciente não se oferece nitidamente à escuta do psicanalista, considerado um suposto saber, suspeitando que nosso relato seja um enigma a ser decifrado, mas que sabe também que na fala do paciente há uma verdade embutida com o proposito de ser dita.
A verdade do desejo inconsciente é sempre sexual, no entanto é uma cobiça interditada. São Paulo nos revela que as leis sagradas existem porque existe o pecado. A partir da Lei “não cobices” nos remete ao pecado.
Na clinica não temos de um lado o analista-investigador” decifrando a verdade paralelamente com o “paciente-culpado”oferecendo pistas falsas ao analista na tentativa de sanar os indícios do seu crime. Quem descobre o crime é o próprio paciente, desde que haja uma relação com o analista. Parece que se trata de uma condição necessária, segundo Freud. .
De nada adiantaria ao analista desvelar essa verdade já pronta, porque ela não é externa ao paciente, mas sim na relação que mantêm com o analista. Essa verdade não é algo externo com um dado que poderia ser encontrado, mas ela não cessa de se manifestar através dos sintomas e queixas do paciente. Expulsar para fora os conflitos inconscientes é uma das funções do ego.
No tratamento psicanalítico, a experiência dialógica levada até as suas ultimas consequências, nos alça de mundo subterrâneo de repetição paralisante de morte para a saída criativa da vida.
Para tanto, é importante que o paciente tenha coragem de se rever, respeitando um dos maiores preceitos da psicanalise que é: “a recusa em tamponar a brecha que existe entre o sujeito e a sua verdade”.
A verdade do desejo inconsciente só pode ser desvelada para viabilizar o desenvolvimento do sujeito humano através da linguagem. A psicanalise, como ciência do inconsciente, indica que somos seres de linguagem e é somente através dela que se viabiliza a verdade do desejo humano, dai o poder das palavras.
Texto extraído do livro A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS de autoria de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Editora Jorge Zahar.
CAIXA PRETA - Roberto Lanza 
28/09/2016 

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