quinta-feira, 2 de setembro de 2021

ILUSÃO COTIDIANA

 No âmago do ser humano há uma fonte que nutre a fantasia de que em algum lugar alguém está nos esperando sem nem saber que a gente existe e, no entanto, pensando em nós com se fôssemos “almas gêmeas”.

Na realidade, o que esperamos deste encontro? As artes, as músicas, os mitos, as lendas, etc. parecem que vêm atestando tal condição. Somos realmente peregrinos na busca de algo intimamente relacionado com a plenitude, para nos sentirmos completos e inteiros.
Infeliz daquele que ignora os riscos e as possibilidades de encontrar pela vida alguém, acreditando que haverá plenitude desse encontro. Haverá sim um encontro, mas será de duas faltas. A sua e a do outro. Se não for percebido isso o perigo é maior que da ilusão vem logo a desilusão..
Estar inteiro é assumir-se como ser humano saudavelmente independente. Seja, portanto, um ser inteiro antes de ser apenas a metade de um casal. Eu gosto de dizer que casado é feito de dois inteiros e não de duas metades. Somente um ser inteiro pode dizer que ama e é amado. Por que ser apenas metade se você é um individuo e seu parceiro (a) também é outro?
Afinal, querer satisfação plena todo mundo quer. Mas abrir mão de si pelo outro é impossível e pouco recomendável. O justo seria tentar ser fiel ao próprio desejo, mas deixando de ter certo cuidado com a forma de lidar com isso. Afinal orientar por uma ética mais solidária talvez seja a saída. Tentar levar as coisas de tal modo que, sendo fieis ao próprio desejo, não esqueçamos que o outro existe e que esta alteridade deve ser considerada. Isso é difícil, mas não impossível. Afinal, que graça teria se na vida fosse tudo muito fácil?
“É difícil ao homem enfrentar-se e encontrar-se a si mesmo. Ávido de exterioridade, sua avidez o conduz ao Vazio. E, fugindo ele de si mesmo encontra-se com a tortura da imensidão de coisas que se abrangem nos sentidos”. (Da Ordem 2,10,30).

E ainda:
“Por que se dispersa fora? Começou a entregar seu coração ao exterior e perdeu-se a si mesmo. Quando o homem, por amor a si mesmo, entrega seu coração às coisas de fora, perde-se na fluidez dessas coisas e, de certo modo, dissipa prodigamente suas forças. Esvazia-se de si. Despedaça-se”. (Sermões 96,2)
Como podemos entender tais pensamentos filosóficos?
“Ao Ego, será sempre impossível a plenitude! Como “filho legítimo” da Grande Separação, do surgimento do “eu separado”, do Adão (que vem do Sânscrito: adhi – aham – “primeiro eu”), sempre lhe faltara algo – pois ele sofre a perda da identidade com o todo, desde que se diferenciou dessa matriz primordial, ontológica, representada inicialmente no psiquismo individual pelo útero materno e, logo após, pela relação simbiótica e edipiana com a figura materna. E em busca desse Algo ele tece desde o nascimento uma teia de incontáveis desejos na esperança inconsciente de sustentar-se sobre o imenso vazio existencial, num desespero inaudível de busca de sobrevivência e auto justificativa para o devir dessa existência.
Ele (o ego) se esforça laboriosamente através da vigília e do sono para satisfazer a cada um dos seus desejos, ora justificando-os como instintos naturais e intransponíveis, ora vestindo-os em trajes mais nobres, como algum bem social  moral, cientifico ou até mesmo espiritual”.(Professor Afonso Celso L. Wanderley.)
Por outro lado, existe uma espécie de lei inscrita em cada ser: na qual ele é feito para a alegria e não para o sofrimento. Viver é uma miscelânea de sentimento, como dor, alegrias, tristezas, prazeres, euforia, amor, felicidade, sem parâmetros de balizamento. Nada disso é coletivo (é pessoal) e nem sequer transferível. Daí a felicidade tornar-se um episódio transitório e repetitivo.
Para grande maioria das pessoas, a vida é um processo de gozar o possível do corpo, reservando-se para a luz da fé as ocasiões de sofrimento inadiáveis. Nossa verdadeira natureza é a paz; a verdade; o amor; a felicidade;... São as crenças cegas que fazem nossa vida infeliz.
Neste sentido, vejamos o que diz o poeta Vicente de Carvalho (1866-1924) em seu Poema Velho Tema, no qual ele exprime essa arrigada condição humana: a incapacidade de sermos felizes por não valorizarmos o que a vida nos oferece.  
Só a leve esperança, em toda vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada.
Nem é mais a existência, resumida.
Que uma grande esperança malograda
.
O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
È uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda vida

Essa felicidade que supomos,
Arvore milagrosa que sonhamos,
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde estamos.

Felicidade, árvore frondosa de dourados pomos. Existe, sim, mas nós nunca a encontramos porque ela está sempre apenas onde nós a pomos, e nunca a pomos onde nós estamos.

CIXA PRETA - Roberto Lanza 
28/09/2016

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