segunda-feira, 31 de agosto de 2015

OS BOICOTES DO EGO

Para nós chegarmos ao ser, “eu sou”, esse sou ganha autenticidade quando ele é energizado com um constante estar. O estar é a mola mestra, é a mola essencial, central para um legítimo ser. Nós temos que ter essa ótica bem definida, com identificação plena com os objetivos bem situados e bem selecionados, sempre reciclados e observados. Todas as vezes que nós queremos transformar o estar num ser, entramos em frustração.

É necessário aprender a sair da frente do espelho e ver o outro semelhante com os olhos da alma. Quem não “sabe dizer eu”,   nunca saberá dizer “você”. Infeliz daquele que não sabe que não sabe e nem sequer quer saber. Assim, ele nunca saberá se responsabilizar pela sua vida. Ora! Não se vive da vida, vive-se a vida. 

A visão do mundo com os olhos do ego é cheia de equívocos e um depósito de mal entendidos, uma vez que o ego  é uma criação do imaginário humano e não é senhor em sua própria casa, como disse Freud. Além disso, ele é um excelente especialista em boicotar a realidade com muita habilidade. 

O estar no mundo de cada um, é apenas uma forma de perceber a realidade de acordo com  sua realidade psíquica. Quantos engodos! Quantos equívocos!

        A fantasia é que é responsável pelo enquadramento da relação do sujeito com a realidade: sua janela para o mundo. É dela que o sujeito tira, ilusoriamente, a segurança do que fazer diante das situações que a vida se lhe apresenta. O sofrimento leva o sujeito a “pro – curar”  tratamento apropriado, visando tirá-lo da sua naturalidade inconsciente e da sua  artificialidade consciente, para a assertividade existencial, o que exige um percurso longo e sinuoso.

CAIXA PRETA Roberto Lanza
01/09/2015

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

APARELHO PSIQUICO


Freud durante suas pesquisas sobre a formação do aparelho psíquico, ele concluiu que o aparelho psíquico não é psíquico, ele é um aparelho de linguagem. Ele  não concebe um aparelho de linguagem como constituído na relação com o mundo, mas como construído na relação com outro aparelho de linguagem.

O aparelho de linguagem forma-se aos poucos, elemento por elemento, na relação com o outro aparelho de linguagem
, e é apenas por referência a esse outro que ele funciona. É importante que se entenda esse “outro” como sendo outro aparelho de linguagem e não como sendo o mundo. O mundo, por si só, não é capaz de produzir um aparelho de linguagem e é, apenas, no seio de uma pluralidade de aparelhos de linguagem que um novo aparelho de linguagem poderá surgir.

É, portanto na relação com outro semelhante, enquanto falante, que o aparelho de linguagem se forma, e não na relação enquanto objeto do mundo. Mesmo o outro, enquanto objeto do mundo, só se constitui como objeto a partir da linguagem, a qual cria o denominado "campo da realidade". Todos
nós nascemos totalmente analfabetos. 

Na realidade o mundo não tem cor, não tem cheiro, não tem sons e nem sequer sabores. São os nossos cinco sentidos que transformam as combinações químicas em sabores e cheiros, as vibrações sonoras em sons e ruídos e os espectros da luz o cenário físico do mundo exterior.


Portanto, não é a coisa que fornece a significação do objeto. Por exemplo: esse vinho é muito saboroso..Não se trata, pois, de uma auto-enunciação pela coisa. O que a coisa fornece são elementos sensíveis, impressões, que somente adquirirão unidade de objeto a partir da linguagem, mais especificamente da relação que esses elementos mantêm com a representação-palavra. Sem essa articulação representação-coisa e representação palavra não haverá apenas aparelho de linguagem, como também não haverá aparelho psíquico. O animais se comunicam mediante uma linguagem apropriada fornecida plea natureza.

A representação-objeto não é, uma representação icônica da coisa, não é semelhante à coisa, mas apenas
índice da coisa. Seu significado é dado pela representação-palavra e não pela coisa. Isto quer dizer que as representações, sejam elas representação-palavra ou representação-objeto, remetem-se umas às outras de tal maneira que formam entre si uma trama ou uma rede de articulações, de signos / signos que na função significante remetem a signos e não a coisas.

É impossível, portanto, imaginarmos o aparelho psíquico como algo que se esgota em si mesmo. Não se trata de um aparelho já pronto que, em seguida, entra em relação com o outro e com o mundo. O aparelho psíquico não é em-si, é para-si, e é nessa relação ao outro que se constitui consciência de si.

A verdade porém é que sua concepção do aparato psíquico encaixa-se perfeitamente com a tese fundamental de Hegel de que o desejo do homem é o desejo do outro, ou, se preferirmos, que o desejo humano é desejo de desejo. Essa dependência fundamental do aparato psíquico para com a linguagem coloca uma questão: a do próprio estatuto do aparelho psíquico. Assim o aparelho psíquico é um aparelho simbólico e não um aparelho psicológico.

Por outro lado, não há aparelho psíquico sem memória, não sendo entendida como uma faculdade ou uma propriedade deste aparato, não é algo que surge depois do aparato já constituído, mas algo que é formador do próprio aparato. Não é o aparelho psíquico que é pré-condição para que se forme o aparato psíquico e sim a linguagem Sem a linguagem a pessoa desaparece e o mundo também.

As opiniões e desejos de outras pessoas fluem para dentro de nós através do discurso. Nesse sentido, podemos interpretar o enunciado de Lacan de que o inconsciente é o 
discurso do OUTRO (Grande outro - pais, família, parentes, instituições, Deus, religião, etc...) ou melhor dizendo: inconsciente está repleto da fala de outras pessoas, das conversas de outras pessoas, e dos objetos, aspirações e fantasias de outras pessoas (na medida em que estes são expressos em palavras). Assim, vivemos num mundo bastante enigmático

CAIXA PRETA Roberto Lanza
21/08/2015

domingo, 16 de agosto de 2015

REEDIÇÃO: As Aparências

A palavra “fenômeno” vem do grego phainein” que quer dizer mostrar-se. Mas, normalmente, entendemos por fenômeno aquilo que aparece e que se mostra quase sempre de modo incomum, extraordinariamente. Já o verbo phainestai” na voz ativa, significa vir à luz, tornar-se claridade, fazer aparecer. Mas, na forma reflexiva, indica uma ação que não é nem ativa e nem passiva, escondendo um modo de ser próprio da ação medieval: a dinâmica de tornar-se e ser “a si mesmo”. As palavras phainestai e phainein (fenômeno) têm origem de phos, que significa luz, incandescência. Portanto,  o verbo phainestasignifica: luzir, ser incandescência da claridade, sendo neste sentido chamado em latim de evideri” , de onde vem a palavra “evidência”. Assim, é neste sentido de “é-vidência” (ser vidência) de mostrar-se presente, de aparecer, que devemos entender a palavra “fenômeno”. Fenômeno é, pois, o que assim se mostra a partir de si a si mesmo.
Aqui é necessário se precaver contra a tendência, em uso, de entender o fenômeno como “aparência” no sentido de exterioridade, isto é, “fachada” externa de algo que está oculto atrás. Assim, como a cor amarela dos olhos é sintoma de hepatite, por não mostrar diretamente a inflamação do fígado, não é fenômeno. Por exemplo: fumaça é sinal de fogo, mas não se apaga o fogo apagando a fumaça.
O modo de ser da “é-vidência” do fenômeno é diferente do da aparência. No fenômeno a coisa é ela mesma que se apresenta, digamos “pessoalmente”, na claridade do seu ser. Neste sentido, a claridade do luar não é sintoma da lua, mas a lua ela mesma no seu aparecer. Os gregos, no entanto, em vez de “fenômeno” diziam também “Ón”, particípio do verbo “einai” que significa ser. “Ón” significa, literalmenteem sendo. Em português, substantivado temos então “o ente”. O ente é o ser.
Os gregos, portanto, consideravam o ente a partir da dinâmica do vir à luz, do aparecer. Assim, fenômeno e ente dizem o mesmo. Tudo que podemos chamar de “entidade” podemos chamar de “fenômeno”, só que, no uso corrente, por “o ente” entendemos como “coisa”, como algo estático; ao passo que por “fenômeno” entendemos o momento dinâmico da ação de aparecer. Daí a conotação de extraordinário, do incomum, na palavra “fenômeno”, na sua acepção usual.
Se entendermos assim tanto o fenômeno como o ente em seus sentidos originários, como incandescência da claridade no ser,  então podemos dizer que cada entecada fenômeno tem seu próprio modo de mostrar-se na verdade do seu ser. Quando um fenômeno não é respeitado no mostrar-se todo próprio da verdade de seu ser, de uma posição alheia ao próprio ente, ao próprio fenômeno, o aparecer do fenômeno, a sua “mostração” se torna defasada, desfocada. Em vez de a “coisa” ela mesma se apresentar na sua verdade, em vez de se revelar, é colocada sob a mira ou enfoque de uma outra causa.
O fenômeno é o que, a modo de incandescência da claridade, se mostra a partir de si a si mesmo na verdade do ser, cuja “mostração” deve ser respeitada com precisão, se não quisermos permanecer na “aparência”. Então, o fenômeno como vir à luz do ente ele mesmo, nele mesmo no seu ser, decai para o estado deficiente de “aparência” no sentido de “falsificação”, de “ser aparente”, de “fachada”, não autêntico e verdadeiro.  A nossa identidade psicológica, ou ego, ou ser social está ligada à personalidade (do latim – “persona” = máscara) e não ao nosso verdadeiro ser, caracterizando um estado de estar em evidência, de idolatria e até mesmo de mendicância afetiva, em busca de afirmação e de reconhecimento do seu valor pessoal através dos outros. A pessoa não se ré-conhece. Prefere ser reconhecida pelos outros.
Torna-se indispensável para o crescimento pessoal e o resgate do ser ou do ente, abrindo a vida para a criação e para a alegria de viver. Caso contrário, a pessoa permanece na alienação de si para consigo mesma, assim a pessoa ao invés de se apropriar do ente ela se torna doente.
Freud já dizia: “O ser humano não morre porque está doente. ele adoece para morrer”

Bibliografia: Estevão Tavares Bettencourt – Crença, religiões, igrejas e seitas. Coletânea de artigos publicados na revista O Mensageiro de Santo Antonio.

CAIXA PRETA
08/01/2015



sexta-feira, 14 de agosto de 2015

REEDIÇÃO: Eu sei quem eu sou! E você?

domingo, 21 de dezembro de 2014


Eu sei quem eu sou. Passo a receita para quem se interessar.

           Sem possibilidade de precisão, mas possivelmente quando eu teria entre cinco e seis anos de idade, ocorreu-me um fato relevante na minha historia de vida, durante a colheita de jabuticabas num pomar pertencente à um fazendeiro nosso conhecido. 
Eu estava acompanhado de minha família, juntamente com outros familiares vizinhos e dentro do pomar tirei os sapatos para subir em um pé de jabuticaba. De pé em pé fui colhendo a fruta e, ao mesmo tempo, apalpando o mundo, mapeando no meu cérebro sabores e outros fenômenos indispensáveis pára a configuração da minha futura existência, semelhante a uma pequena peça de um mosaico. Contagiado pelo o Dom da vida, fui sendo invadido por uma sensação de euforia,  de liberdade inerente à existência;          
Desprovido de percepção da realidade, fui me afastando do grupo de familiares, permanecendo bastante distraído por determinado tempo.
Quando acordei para a realidade, com o dia já escurecendo, eu me encontrava sozinho e fui tomado de muita aflição, gritei pela minha mãe, mas foi em vão. Desci do pé de jabuticaba apanhei os meus sapatos, mas não conseguia caminhar descalço naquele solo cheio de gravetos perfurantes. Gritei por socorro novamente, mas foi em vão.
De repente, olhei para as fôrmas dos sapatos e simultaneamente a formas dos meus pés e o milagre aconteceu. Consegui articular o encaixe dos pés pela percepção da forma de cada pé com as fôrmas de cada sapato, encontrando a solução. Calcei os sapatos sem dificuldades, o que antes não sabia fazer. Sempre dependia de minha mãe para calçar os sapatos, por virgindade daquele ato, cuja descoberta fui tomado de uma espécie de euforia de libertação, fato comprovado pela minha consciência, pois  nunca mais dependi de minha mãe para tal finalidade.
Acredito que tal evento foi um marco inicial para o penoso processo de inserção na civilização, pois não me lembro de outros eventos similares naquela idade. Certamente muitos outros eventos se manifestaram, mas estão arquivados na minha caixa- preta”, provavelmente de forma inconsciente.
Lembro-me muito pouco da minha pequena infância, mas sei, de forma sintomática, que não foi muito fácil o natural percurso de desvinculação dos laços afetivos familiares com o mundo externo no qual fui inserido.
Ingressei-me no grupo escolar aos sete anos de idade. Aos poucos fui aprendendo, também, como me preparar e vestir o uniforme, por iniciativa própria, mas dominado por uma angustia inominável. Que bom que eu aprendi a me preparar para o meu ingresso na civilização (afinal, não existe outro meio!), mas, há um risco. Vejamos o que disse o Grande Pensador Rubens Alves: Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas”.
Por outro lado, considerava tudo uma obrigação sem sentido e desagradável. Tomei até antipatia do banho e do uniforme escolar. Sentia-me conduzido por algo misterioso e indesejado retirando-me do aconchego e da zona de conforto.
Disso eu nada entendia. Nem tampouco na escola primária, como por exemplo: a lógica da análise sintática da disciplina Língua Pátria. Aprendia no decoreba. Quando passei a entender matemática dentro da sua lógica formal (pois tinha facilidade), tudo melhorou para outras disciplinas. Interessante destacar que: quem resolve um problema de matemática está focado no processo, sem se preocupar com o resultado. Eis aí um paradigma para a importância da busca e da indagação. O processo é sempre recorrente a valores já conhecidos, tais como: tábuas aritméticas, princípios, axiomas, propriedades primitivas ou postulados e outros princípios e valores em alta escala.
Na minha história singular, gostaria de destacar outros pequenos tópicos que vivenciei no trajeto da minha infância para a adolescência, época onde as tradições culturais, pelo menos, eram mais autênticas e mais assertivas..
Algumas vezes, ficava observando os urubus plainando no céu sem precisar bater suas asas. A inveja me dominava e eu questionava de maneira egoística: por que eu não possuo este privilégio? Será castigo de Deus?
E mais, ainda: naquela época sempre ficava fascinado, quando visitava o alto das colinas ou das serras, observando o sol aparecer ou desaparecer na linha do horizonte, até onde os meus olhos alcançavam.
Acreditava, com a minha ingênua imaginação, que ali era o inicio ou o  fim, mesmo com uma incrível admiração e natural beleza, permanecia lá, alheio ao mundo e à deriva da minha imaginação, olhando o solo ressurgindo ou se afastando aos poucos, e encontrando com as aureolas solar matutinas e vespertinas Será que está começando um dia novo ou um velho dia de novo?. Faz sentido para a natureza humana!
Apesar do ciclo vicioso ou ciclo virtuoso condicionante à percepção de cada um de nós, eu buscava encontrar lógica para a tais fenômenos, mas eu não possuía alcance suficiente para compreendê-los. De maneira superficial, conseguia perceber que o dia e a noite não podiam conviver juntos e que, por outro lado, a constituição de um lar necessitava de um pai e de uma mãe (indícios de polaridades para mim  predominantes).
Essa repetição cambiante, assim como outros fenômenos existenciais, algumas vezes novo dia, todo irradiante e iluminado parecia=me como o Dom da vida. Mas, outras vezes, tudo parecia o velho dia de novo, se repetindo. Essa inquietante estranheza, fruto da repetição, incomodava-me bastante. 
Acontece que a natureza sempre foi, é, e será assim de forma autônoma e sem tomar qualquer tipo de deliberação, constantemente em processo de evolução sem dar saltos, sempre indiferente à nossa opinião e contemplação. Afinal, por que nos rebelamos com tão indiferença da natureza?
O principio da não indiferença ou do manancial de diversidade de coisas. objetos e valores só existe para a humanidade.Tudo que é antrópico não é natural e é tributário da linguagem humana...
Assim, parecia-me que cada conhecimento adquirido induzia-me a acreditar que: “quanto mais visibilidade, maior é a invisibilidade” (pensamento filosófico).
Torna-se oportuno mais uma vez citar Rubens Alves::
“Há pessoas de visão perfeita que nada veem... O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido [...] o que somos é o resultado de uma história que fizemos – e que poderíamos ter feito de maneira diferente.”... e se não poderíamos tê-la feito diferente, não podemos agora fazê-la?.
O tempo passou, eu cresci e entendi que o novo dia causava-me alegria enquanto que o velho dia de novo era uma repetição angustiante.
Da mesma forma, o aumentar dos solos e o diminuir da intensidade da luz solar não era de verdade, pois tal fenômeno sumia para mim enquanto surgia para outros olhares que, em algum outro lugar, dividia comigo o ato magico de navegar pela vida.
Tratava-se, portanto, na verdade, de tudo que eu via era pelo singular e puro fato de quem ainda não aprendera sobre certos limites.
Com o meu amadurecimento natural e pessoal, pude compreender que tudo se tratava de compartilhar com nossos semelhantes  uma maneira sutil de ritualizar uma nova existência..
Trata-se de um fato de que temos sempre a opção de continuar achando que a finitude dos horizontes da percepção seguem o pressuposto da sentença do berço ao túmulo”. E ainda, quando chegada a hora, morrerão por si só.
Um importante conceito filosófico nos diz que: “nada nasce ou perece, tudo que existe é uma mistura e separação de coisas já existentes”.
Faz sentido matar dentro de nós. Questão de espaço.. É que não comportamos tudo. Não há espaço para tantos conhecimentos e sentimentos. E quando insistimos em manter vivos certos sentimentos através de respiração artificial, não há espaço para nascer nada de novo. Então temos que abrir o baú dentro de nós contendo  mágoasdores – velhas ou novas moções empoeiradas, vícios humanos, escolhas erradas, ferimentos mantidos sangrando, decepções, conceitos obliterados, amores infelizes, imagens amareladas, relacionamentos passados, tristezas, amarguras, pessoas perdidas, etc.. É o protótipo dor de existir que morde a vida e sopra a ferida da existência.
Há dentro do ser humano um sentimento profundo de perda de algo precioso e um forte vínculo que caracteriza uma união e, ao mesmo tempo, uma interdição como se a articulação existencial do um com o outro não existisse como separação.
No fundo uma anulação da identidade própria dotada de um complemento, bloqueando uma alteridade feliz e desejo de amor e de sexualidade.
Mas, na verdade, isso significa manter no nosso âmago tudo - até o lixo - que arquivamos em nossa “caixa preta” cada vez mais abarrotada de arquivos que crescem e crescem engessando a nossa vida, que, na verdade, não passam de arquivos mortos. É isso! Ou então encaramos a fera e aprendemos a matá-la.
Mas, o que deverá morrer em mim hoje? Essa é a pergunta que a fera sugere para começar.
E eu, com a experiência vivencial observadora, permiti-me acrescentar: não basta escolher dentro de nós o que deve morrer e em seguida matar. É preciso enterrar. Assim, eu passei a ver o mundo de outra maneira e não foi o mundo que mudou, foi eu.
Acontece que os nossos desígnios conscientes não são capazes de elucidar os enigmas do nosso mundo subterrâneos cheios de vastas emoções e de pensamentos imperfeitos. Por capricho do destino do humano, condenado a ter consciência de si mesmo, é um ser subvertido pela verdade do desejo inconsciente e representado pela ordem simbólica. Somos “plugados “ demais às nossas tradições cultuais. 
E por aí vai... A lista é individual e cada um tem a sua. O que é comum a todos é a responsabilidade de, interiormente, exterminar, dar fim ao que é ruim para que algo novo e bom possa nascer.
É fácil?  Não mesmo! Matar internamente não é um simples desejar, é mudança de atitude. No entanto, para mudar comportamentos de forma permanente, é necessário mudar primeiramente as concepções que os fundamentam. No entanto, Infelizmente, no ser humano “há um saber que convence, mas não converte”. 
Porque às vezes o que nos fez mal já está pra lá de morto, mas mantemos mumificado dentro de nós, para usarmos como referencial, para não esquecermos de que sofremos para não cairmos de novo nas mesmas armadilhas. Outro engano: nada é igual nunca. Dores embalsamadas não servem como exemplo e nem protegem, só paralisam.
Não há fórmula. Não há bulas. A única maneira de viver é permitir que a vida nasça e morra e de novo nasça, tantas vezes quanto forem necessárias. Portanto, para abrir os espaços é necessário fazermo-nos  perguntas. E uma vez identificado o que não é bom e não nos serve mais, devemos dar-lhe a morte. Em seguida enterremos nosso morto, choremos um pouco, e, cumprido o ritual, vistamo-nos com esmero para esperar. Afinal, viver é inventar a vida. Algo bom estará nascendo.
E olhando da janela da nossa “caixa preta” para o horizonte que parece ser o fim, mas é também o princípio, podemos considerar: “não somos nada, o que buscamos é tudo”. .(Rubens Alves).
A partir da reflexão de Nietzsche a seguir, é possível pensar nas várias maneiras de exercermos a nossa liberdade, mesmo que para isso seja necessário nos perdermos. A grande sabedoria está no saber perder-se a si mesmo e em seguida buscar o caminho do reencontro consigo mesmo:  "Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo é preciso saber, de tempo em tempo perder-se e depois reencontrar-se, pressuposto que se seja um pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma pessoa". Afinal, viver é inventar o dia por si só
Com base na reflexão acima, acrescento eu: o sentido proposto por Nietzsche para tal pessoa, não se trata de uma pessoa qualquer encontrável no mundo exterior, trata-se de um outro de mim mesmo ao qual sou mais apegado, mas não me completa nunca. 
                                                                     
            Para concluir: 

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas 
usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer 
os velhos caminhos, que nos levam sempre 
aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: 
e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado,
para sempre, à margem de nós mesmos.”
Fernando Pessoa

CAIXA PRETA Roberto Lanza 

REEDIÇÃO: FANTASIA DA SEPARATIVIDADE.

O PARAÍSO PERDIDO

De início podemos citar o texto do famoso Psicanalista Erich Fromm (Bouddbisme Zen et  Psychanalyse, Paris, PUF, 1971, p.97): 
                          “O próprio fato de nascer cria um problema.. No momento do nascimento, a vida coloca uma questão ao homem. Esta questão deve ser respondida. Ele deve respondê-la a cada instante de sua vida. Não é seu espírito, nem seu corpo, que devem respondê-la. È ele, o individuo que pensa e sonha, que come e bebe, chora e ri – o homem em sua totalidade – que deve responder. E a questão é a seguinte: Como superar aquilo que cria experiência de separação, aprisionamento, sofrimento, vergonha?”.  
Nossa verdadeira natureza é a paz; a verdade; o amor; a felicidade. São as crenças cegas que fazem nossa vida infeliz.
            As crenças são ilusões que sequestram a nossa identidade e a coloca fora de nós mesmos. Segundo a Filosofia, vivemos a “esperança milagrosa” de felicidade, da felicidade que existe, sim”, mas que não a alcançamos porque“nunca a pomos onde nós estamos”, embora “esteja sempre e apenas onde a pomos” (convite à filosofia – Marilene Chaui).
            Freud, considerado como um dos maiores gênios do século XX, criou a Psicanálise, denominada Ciência do Inconsciente, revolucionando as Ciências Médicas com seu surpreendente moto: “o Eu (Ego) não é senhor em sua própria casa” e, ainda, Eu sei que Eu sou Eu, mas Eu não sei que Eu  sou Sujeito do desejo inconsciente”.            
     No entanto, nada é tão antigo e atual do que tentar entender a existência humana. Assim, o que se pretende abordar neste texto, são algumas reflexões sobre questões que se manifestam na nossa vida cotidiana, relacionadas com a própria existência de cada um, bem como o fato de sermos forçados a tomarconsciência de nós mesmos. 
O ser humano, na sua angústia vital, necessita de um modelo exemplar para sair do vazio que sente em seu coração e na sua mente. Apesar de ter abundantes meios de vida, faltam-lhes os motivos para existir, bem como um sentido para a vida, dolorosamente vazia, submersa na angustia e na depressão. Um ser despatriados encontra-se perdido dentro de sim mesmo, desde que que não tenha um representante inconsciente que o represente, como exemplo o Hino ou a Bandeira Nacional.  
Para melhor reflexão de cada leitor que se interessar, repasso literalmente e na íntegra o capítulo Introdução do Livro "A NEUROSE DO PARAÍSO PERDIDO" de autoria do Famoso Psicanalista Pierre Weill. Editora CEPA, edição de 1987:

"O homem se caracteriza, em seu comportamento cotidiano, por uma busca constante de felicidade, de alegria de viver, de paz interior; ele procura o prazer e foge da dor.

Isto mostra que existe profundamente enraizada no âmago de seu ser, a memória de um estado de plenitude sem obstáculos e de êxtase permanente.

Esta memória enterrada no âmago de sua existência constitui a motivação fundamental de todas as suas ações, quer sejam elas, julgadas como positivas ou como negativas.

A busca da felicidade permanente leva-o, no plano físico, a procurar sensações agradáveis de toda a espécie: ver e contemplar formas humanas ou cênicas agradáveis, saborear iguarias deliciosas, trocar carícias sensuais que conduzam ou não ao orgasmo, cantar ou ouvir a música da natureza ou a sinfonia de uma orquestra, sentir o perfume de uma rosa. No plano afetivo, sua busca de amor e de troca de ternura e de alegria não tem fim. No plano cognitivo, uma curiosidade, muito freqüente insaciável, fá-lo apreciar as alegrias da descoberta, assim como a euforia da criatividade literária e artística.

Existe, pois, uma espécie de lei inscrita em cada ser: é feito para a alegria e não para o sofrimento.
Entretanto, parece que um obstáculo fundamental impede a maioria dos seres de viver plenamente esta felicidade para a qual parece existir, ela lhes escapa, sem que tenham consciência da causa deste fracasso constante.

Nenhum destes prazeres ou alegrias que acabamos de descrever dura. E lá onde havia felicidade sobrevém a frustração de seu desaparecimento. O homem busca um estado permanente, alguma coisa nele lhe dá a certeza da existência de tal estado; no entanto, encontra apenas a impermanência.

Feito para a felicidade, sua existência toma a cor da insatisfação.

Existe dentro de cada um de nós um sentimento muito profundo de insatisfação; este, muito freqüentemente, está oculto, sobretudo entre as pessoas que se acham felizes,  por estados provisórios de descarga de tensões, devido à satisfação de certas necessidades; mas esta satisfação é transitória e é justamente o caráter impermanente do prazer a ela ligado, que provoca um apego à memória do prazer cujo caráter fantasmático abastece a natureza do desejo.

E, damo-nos conta, cedo ou tarde, conforme o caso, que a satisfação completa não existe, pois apenas passamos alternativamente da tensão à descarga, e da satisfação à tensão; constatamos, por vezes amargamente, que passamos nosso tempo em busca de uma felicidade permanente que não se encontra nem na abundância de alimento, nem no conforto, nem na segurança relativa de nossas casas, nem em nosso conhecimento das posições eróticas daquilo que pensamos ser o amor, nem na embriagues que nos proporcionam os poderes de qualquer tipo. Nosso sistema socioeconômico de consumo exagerado de segurança, de sensações e de poder, embora tenha diminuído em grande parte a miséria da insuficiência de satisfação de necessidades vitais, não forneceu a felicidade que os regimes políticos nos prometem, sobretudo no caso daqueles que já atingiram o nível de conforto de um rei ou de um imperador, como existiram antigamente, e em nome do qual foram feitas e continuam a serem feitas revoluções sangrentas. E, não é a revolução da informática que vai resolver este problema, especialmente quando entrevemos o que se está fazendo com ela.

quanto mais temos mais queremos, basta comparar as reivindicações populares nos países economicamente desenvolvidos e no terceiro mundo... Tem se confundido a felicidade com o bem-estar do conforto e da abundância.

Sem dúvida alguma, torna-se indispensável que se terminassem com a miséria e que se escolhessem os sistemas socioeconômicos mais eficientes para isso. Mas convém também, e paralelamente, ou melhor, ainda mostrar a todos de uma maneira integrada, através de uma nova abordagem da existência, como sair do círculo vicioso da insatisfação e reencontrar este paraíso perdido, o qual certamente não se situa lá onde a propaganda dos meios de comunicação o coloca.

O conforto e a abundância são importantes, mas não dão automaticamente a paz de espírito e a alegria no coração.

Ainda é necessário aprender como se relacionar com todos estes “benefícios” de nossa civilização tecnológica.

Basta observar o que acontece com aqueles que atingiram, enfim, este nível socioeconômico e este conforto tão ambicionado. No plano físico, as doenças de carência desapareceram, felizmente. Mas são substituídas por novos males: a coluna vertebral se deforma e tensões musculares se desenvolvem sob o efeito de poltronas e camas macias, terminam por sentar-se no chão e dormir sobre colchões pomposamente chamados “ortopédicos”. Em suma, dormem sobre o duro, como o índio e o pobre.

Comem demais, empanturram-se de doces e confeitos, e para evitar o “diabetes” e as doenças do fígado, submetem-se àquilo também pomposamente chamado de orientação "dietética”. E acabam por comer a mesma coisa ou até menos que o índio e o pobre, a menos que se internem em uma clínica de jejum... Paga-se caro, muito caro, para aprender a não comer! E à custa de refinar nossa alimentação, recaímos em novas doenças de carência, sem contar as intoxicações químicas de todos os tipos; então, oferecem-nos um novo tipo de alimento o qual chamamos pomposamente de biológico, orgânico e integral; em suma, fazem-nos ingerir o pão preto do pobre e o arroz integral do índio.

No plano emocional, o progresso que nos é oferecido resulta de uma interpretação simplista da obra de Freud, de uma extrapolação apressada da psicanálise, a qual, originalmente, é uma pesquisa sobre a natureza da neurose, extrapolação acerca do homem sadio, de uma compreensão errônea de conclusões tiradas da patologia; ela leva a um reducionismo grosseiro cujas consequências desastrosas começam a se fazer sentir em todos os domínios, mais especialmente na educação onde a confusão e a desorientação atingiram um grau máximo. Pais e educadores não sabem mais o que fazer. O raciocínio oferecido ao público é muito simples: uma vez que a neurose resulta de uma repressão dos instintos, de um recalque, para evitar a doença psicossomática, libe remos os instintos, satisfaçamos todas as necessidades; e, sobretudo, permitamos às crianças toda a liberdade; para evitar os complexos, façamos aquilo que elas queiram! Os resultados saltam aos olhos: a dissolução do superego no adulto e sua má estruturação na criança provocaram uma liberação dos aspectos egóticos do id: agressão e violência em todas as formas, possessividade, competição sem limites, indiferença à miséria física e moral. E, como veremos adiante, aparece uma nova repressão, a repressão dos valores relacionados à beleza, à verdade, ao amor universal, à criatividade, valores que, quando recalcados, provocam também doenças de carência, a começar pelo mal estar e o sentimento difuso de insatisfação próprio daqueles que têm tudo para estarem satisfeitos e que se encontram, no âmago de si mesmos, profundamente infelizes.

Terminamos, então, por buscar estes valores que existem ainda, principalmente nas pessoas de vida simples, nos pobres e, como mostram as pesquisas não sociocêntricas, nos índios, naqueles que chamamos de “selvagens” e que se tornaram hostis em relação ao branco dito civilizado, porque este invadiu seu habitat, violou suas mulheres, impôs sua maneira egocêntrica e selvagem de viver e fomentou lutas fraticidas entre as tribos para poder aniquilá-los e apoderar-se de suas terras.

No plano mental instala-se a instabilidade: passamos de um assunto a outro sem mais nenhuma direção definida, reina uma incoerência completa entre opiniões, atitudes e comportamentos; a pessoa é democrata, anti-racista e socialista, desde que não se aumentem os seus impostos para se fazerem empréstimos ao terceiro-mundo; e principalmente que a filha não se case com um negro ou um judeu...

Somos dominados pelo pensamento, cuja natureza é contraditória; como não temos, atualmente, tempo de pensar, somos arrebatados pelo devaneio que nos deixa em uma atitude de estupor mental, diante desta dialética sem saída. Alguns, causados pelos conflitos permanentes refugiam-se no álcool e na droga; a perda do sentido da vida aumenta a porcentagem de suicídios, como ocorre nos países economicamente muito desenvolvidos; o cinema, a televisão, o jogo, não são mais suficientes para atordoar-nos; no plano sexual, estamos entediados, impotentes ou frígidos.

A preguiça se instala: para que se esforçar? Temos botões para tudo e máquinas para calcular, pensar, traduzir, raciocinar, organizar e logo, talvez, criar, como já querem alguns.

É verdade que alguns reagem contra este estado de coisas: “retornam à terra”, praticam alpinismo, caçam na África, arriscam a vida, um pouco como o pobre e o índio...

De fato, o ser humano procura a fonte da felicidade fora de si mesmo, não mais percebe que é vítima de uma ilusão de ótica, de uma fantasia fundamental; esta fantasia constitui a fonte desta busca compulsiva e repetitiva deste paraíso que no fundo jamais perdeu, mas que apenas está velado. Este véu é a fantasia da separatividade"
.


CAIXA PRETA Roberto Lanza
* Grifos meus.

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REEDIÇÃO: O PODER DAS PALAVRAS

A linguagem, na época em que vivemos, era da tecnologia de ponta, está a serviço da  imagem e é por ela sustentada. O predomínio da imagem sobre a palavra não poderia ocorrer sem a explosão da técnica que passou a ocupar todos os recantos da vida cotidiana. O seu símbolo é o “outdoor”, máximo de exposição no mínimo de espessura. A era da técnica sustenta-se no seu descomunal sucesso.            
A tecnologia é vista como o bem mais precioso. Sem o qual a vida de uma nação pode perigar. A devoção ao culto do imaginário, diante da televisão ou computador, torna o homem exilado da palavra, portanto da impossibilidade da simbolização que viabiliza o verdadeiro sentido de vida.
Por outro lado, em sociedade de consumo, vivemos hoje em uma espécie de evidência do consumo e da abundância, criada pela multiplicação de objetos, na qual os homens da opulência não se cercam mais de outros homens e sim de objetos (Tv´s, carros, computadores, telefones...). Suas relações sociais não estão centradas com outros homens, mas na recepção e manipulação de bens e mensagens. Essa deterioração dos laços sociais e o empuxo ao prazer solitário só estimulam a ilusão da completude não mais com um par, mas com parceiro conectável ao alcance da mão. O resultado não pode ser outro senão a decepção e a tristeza, o tédio e a nostalgia do Um em vão prometido.
A imagem é completa, indicadora imediata de ações cuja função é o domínio da realidade. Mas ao mesmo tempo esvazia a palavra de seu poder nomeador e assim esvazia o homem do seu poder de inter-relacionamento. A evasão do real de uma região obscura para o despertar da realidade da vida, somente pode ser viabilizado pela palavra, através do caminho da simbolização, mas pelo discurso pleno, em contraposição à tagarelice, o discurso vazio.
O homem desprovido de seu poder de ser, isto é, de se expandir a partir do que é, infla-se na acumulação do que não é, no inessencial. Dessa forma, ele instalou-se no falatório no qual tenta, em vão, preencher o vazio sem fundo, ao mesmo tempo em que seu ego infla-se.
A palavra que nada diz, depaupera a própria palavra. O homem sem a palavra é, na verdade um ruído. Fica irremediavelmente aprisionado em sua subjetividade, como acontece com os pichadores das paredes das escolas, quanto mais se exprimem, menos há a dizer.
Isso é precisamente o narcisismo, a expressão a todo custo, o primado do ato de comunicação sobre a natureza do que é comunicado, a indiferença dos conteúdos, comunicação sem finalidade nem público, o destinador tornado o seu principal destinatário.
Domado pela palavra etiqueta, o novo objeto de passageira curiosidade e, rapidamente, é lançado no esquecimento. A transparência total é a linguagem do pragmatismo virulento, linguagem única, exclusiva da era técnica, onde imagem é critério de verdade. Ela eliminou a possibilidade de existência do invisível. As palavras já não trazem mais a “carga e o poder de evocar”, novas possibilidades.
Escutar exige esforço maior do que ver. Escuta-se por partes, que devem ser interpretadas à medida que são recebidas. A imagem aparece à vista como algo completo, que pouco exige do expectador. O que ocorre hoje, é que vivemos na era da exclusividade da imagem. A primeira consequência desse fato é o desaparecimento da linguagem como lugar da verdade.
Na palavra diz-se possibilidade, o que ainda não é pode vir a ser. Ser da possibilidade, no encontro consigo mesmo. Sem as palavras os conflitos permanecem ocultos.
CAIXA PRETA Roberto Lanza
08/01/2015

Nota: Texto compilado do original do Dr. Djalma Teixeira de Oliveira, publicação nº 3, MAIO/1999/2000,  revista VORSTELLUNG do GREP (Grupo de Estudos Psicanalíticos de Belo Horizonte).

REEDIÇÃO DE: UMA QUESTÃO DE VIDA OU MORTE

Gostaria de repassar-lhes, literalmente, um artigo de autoria da Psicóloga Deborah Maria Michielini, publicado na revista CENÁRIO - Psicanálise e Cultura, edição 05/1996, do GREP - Grupo de Estudos Psicanalíticos de Belo Horizonte. O assunto é um pouco longo, mas vale a pena ler por se tratar de uma questão fundamental para quem se interessa em conhecer-se melhor. .

        DESEJO HUMANO 

 Quando as pessoas procuram por uma psicoterapia, é comum que se descubra por trás de seu sofrimento uma dificuldade em relação, a saber, sobre o próprio desejo: até onde agem de acordo com o seu desejo, e até onde o fazem de acordo com o desejo do outro?
 A angústia por não se saber mais a distância entre o próprio desejo e o desejo do outro é um dos pivôs na análise do sujeito, que anseia por seguir um caminho no qual não se encontre tão à mercê do outro.
         Mas onde se inicia esta história do desejo? Qual o seu papel na história do sujeito? E qual é, exatamente, o fator de angústia que essa questão desencadeia?

O início

Para Freud, a porta para a emergência do desejo se abre a partir da primeira experiência de satisfação do infans: após a primeira mamada, uma imagem perceptiva do objeto provedor do alimento (no caso o seio) permanece gravada na memória do recém-nascido. Quando da segunda emergência da necessidade, ainda incapaz de realizar uma ação específica que lhe resolva a tensão interna, o bebê investirá nessa imagem mnêmica (memória), alucinando o seio e a satisfação da necessidade. No reaparecimento da percepção, estabelece-se o desejo.

O que se pode pensar a partir daí é que o desejo surge de uma falta, apoiada numa experiência de satisfação. Fosse apenas uma necessidade nesse momento, um objeto alucinado não resolveria a questão. Trata-se de desejo porque se realiza através de uma fantasia.
Vemos que o desejo não é algo natural; afasta-se da necessidade, impondo-se por uma falta numa relação com o outro. E se por um lado ele busca um objeto, o faz diferentemente da necessidade, orientando-se por sinais que constitui o fantasma (“encenação imaginária em que o indivíduo está presente e que figura, de modo mais ou menos deformado na realização de um desejo”).
Numa referência à noção de desejo na filosofia de Hegel, Garcia Rosa (1988) vai dizer que o desejo, por ser não natural, e que só outro desejo teria essa característica. O desejo, portanto, seria desejo de desejo; desejo do desejo do outro, nas palavras de Lacan, também citado por Garcia Roza.
A relação é sempre com o outro...
A cria é indigente, incapaz de se bastar. Para que sobreviva, carece de um OUTRO Materno (Grande OUTRO). É ele que atende o seu apelo urgente, preenchendo lhe a falta.

Quão onipotente não é esse Outro...
A criança chora, a mãe tem para dar.
No seu dar, a compreensão de um apelo.
Na interpretação do apelo, a introdução na linguagem.
Na introdução da linguagem, a criação da demanda.
Na criação da demanda, a viabilização do desejo.

Mas... Quando a criança chora, quem saberá exatamente do que se trata? Pois digo que é só no imaginário (Registro do engodo e da identificação) que essa relação pode-se dar. Somente no imaginário materno corresponde ao lugar onipotente de saber do desejo do outro. Ao choro do infans, a mãe responde: “É de fome? É de frio? É de dor?”, porque assim espera que seja. A sua falta torna-se, então, a fala do filho, o seu desejo, o desejo do filho.
Neste momento, mãe e filho formam uma mônada, uma célula só, na fusão, o desejo confuso do bebê é espelhado no outro e só assim pode ser reconhecido e atendido. Uma sintonia perfeita (?) mãe-bebê, num mundo onde nada mais além parece existir. Cada um ocupa o lugar daquilo que completa o outro, preenchendo o vazio deixado pela falta original.
Essa relação, apesar de imaginária, é necessária para que os desejos se inscrevam, pois não há possibilidade da existência da criança sem o olhar desejante da mãe.
É no reconhecimento da cria enquanto FILHO, o qual carece do outro enquanto MÃE, que é possível a estruturação de um sujeito humano. É o olhar estruturante, se sobrepondo ao puro instinto materno (Elizabeth Badinter, em seu livro o Mito do Amor Materno mostra como o instinto materno não é algo que parte do ser humano, mas que se constrói durante a própria história da humanidade. Trata-se de um amor conquistado e não dado pela espécie, como no caso dos outros animais). Aquele que é FILHO, ele precisa ser investido libidinalmente, ou seja, ele demanda amor. Mas, a demanda só é de amor porque a mãe assim reconhece.                                                                                                                      Na falta desse olhar apaixonado, não se estrutura um homem cria-se apenas um ser biológico. A cria carece de um envoltório libidinal. Garcia Roza (1985), citando Lacan, diz que, tal como o pinto rompe a casca do ovo e perde, não somente a mãe, mas a membrana que o protegia, a criança também, na hora do parto, não perde a mãe, mas uma parte de si mesma. E diz ainda Lacan: “Rompendo a casca, faz-se o homem, mas também a omelete”, ou seja, se este ser que nasce não for investido por um envoltório erógeno imaginário, ele será só um ovo e se esparramará, movido pelo puro instinto, sem uma forma humana.
Os limites corporais que a mãe designa à criança impedem que ela sucumba a um Real cruento o qual não pode ser simbolizado totalmente. Penso o Real como um registro da ordem do inominável, no qual o sujeito encontraria saída para a vivência do desamparo. Como bem observou R. Spitz (1988) nos casos de crianças institucionalizadas, sem essa moldura libidinal, mesmo supridas todas as necessidades, essas crianças entravam num estado de marasmo, o qual denominou Síndrome do Hospitalismo. Do que elas careciam? Do desejo do outro, do olhar, do toque sedutor que erotiza e livra o ser humano do puro estado natural, animal, biólogo.
O desejo desse primeiro momento imaginário, entretanto, não reconhece ainda como tal. Aquela citação Lacaniana, “O desejo é desejo de desejo do outro”, indica que é numa relação especular, por oposição ao outro, que o sujeito saberá do seu desejo, ou seja, a partir do desejo do outro que se lhe impõe. O outro funciona como um espelho, que lhe devolve a própria imagem. A partir dessa relação espelhada, a criança não é mais só uma massa esparramada, como diz G. Gabas (1980), explicando a fórmula do momento narcísico no qual a criança se encontra:

 DESEJO / SUPORTE

A criança toma a si mesma como suporte, mas é uma estrutura mediata: o outro modela o seu desejo. G. Gabas explica que esse duplo narcísico exige do infans ser dois para ser único. Tem que ser ele mesmo e o objeto. Neste momento, o sujeito e o desejo ainda não existem como tais. Terá de haver uma clivagem para que se possa sair dessa relação onde o sujeito se alterna no outro se perdendo de si mesmo e do seu desejo. Tem-se que sair, pois tal como no mito de narciso, que se precipitou nas águas apaixonado pela própria imagem refletida, o destino do sujeito apaixonado pelo Outro de si mesmo é a morte. E essa díade só se poderá romper com a entrada de um terceiro elemento que intervém desviando os olhares da contemplação. Sem isso não se torna possível a saída da relação imaginária e a célula narcísica se fecha, abortando um SUJEITO QUE AINDA NÃO É sendo ele ainda um esboço do EU. E é pela via do Simbólico (´”O simbólico faz do homem um animal fundamentalmente regido, subvertido pela linguagem, o que determina as formas de seu vínculo social e suas escolhas sexuadas”) que a célula há de se abrir, seguindo a trilha da linguagem.
Esse simbólico, entretanto, não é algo que só agora aparecerá. Ele já está presente desde sempre, sendo que somente por este tempo é que a criança se dá conta dele. É que na célula narcísica há um furo, localizado na mãe e no seu desejo. Na falta, o prenúncio do simbólico. (Observação minha: Segundo Lacan a palavra mata a coisa e coloca em seu lugar o símbolo, criando o fantasma da ilusão de completude na sexualidade humana).
Vejamos: No idílio da completude que a relação imaginária oferecia, a falta insistia em se inscrever. Aquele filho do desejo nasceu de um ideal dos pais. Nascido de um ideal, ele será sempre o filho da desilusão, pois nunca corresponderá à expectativa nele projetada. Exatamente por isso, o universo da mãe não será preenchido só pelo filho, havendo algo mais que ela buscará alhures. A falta se inscreve, então, também para a criança, pois nem ela tem o outro a tempo e a hora de sua necessidade, como esse outro também não a tem como objeto exclusivo de desejo; o que é uma só coisa: Só se pode atender a tempo e a hora se não se tem mais nada a desejar.
Assim, a criança só tem sua demanda atendida parcialmente: em algum momento a mãe falha na interpretação de seu choro. É como se um ruído, de repente, penetrasse na sintonia perfeita das estações “Mãe-Bebê”, uma espécie de linha cruzada, uma interferência externa que prejudica a comunicação: Mesmo que um insista em ser ouvido, ou o outro insista em atender, uma terceira voz se sobrepõe, impedindo a compreensão. Com o ruído, algo se perde.
O seio alucinado daquele primeiro momento de emergência do desejo seria o representante desse algo perdido, um elo perdido, que para a criança é como um objeto que ela na verdade nunca teve, mas pensa ter perdido. Uma falta primordial, protótipo da angústia e da saudade 
É apresentado a seguir o poema "O eu profundo e os outros eus" , de Fernando Pessoa,  Rio de Janeiro, Editora Nova Fontreira.

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga o cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei por que, uma angústia recente
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira  janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
                          
Essa “Pessoa misteriosamente minha” é na verdade o que Lacan chama de objeto causa do desejo: objeto que é uma falta, falta que não é do outro, mas do próprio ser. Falta a partir da qual emergirá o desejo. Desejo que, caracterizado pela “presença de uma ausência” é a “nostalgia do objeto perdido”, nas palavras de Garcia Roza (1988).
Uma ausência e uma perda instaurada definitivamente por aquele ruído que é o simbólico, ou seja, tanto a falta da mãe, a qual a impede de “ouvir” com perfeição o apelo da criança, quanto à interferência da voz do pai, efetivada justamente pela mãe que o busca para além do filho.
O pai funcionará como aquele que é a razão da exclusão do sujeito no desejo da mãe. (Tal como a MÃE é função de maternagem, PAI também deve ser entendido como função). Esse pai causará o desequilíbrio na homeostase da díade, o qual terá de ser inscrito para a criança, simbolizado. G. Gabas (1980) nos diz que, neste momento, o pai intervém no desejo incestuoso, e a sua morte é desejada. Mas o pai desejado morto é o pai do desejo da mãe, e o pai real; entretanto, o pai independe da cria para existir ou não no desejo da mãe, e o sujeito acaba tendo que se encontrar com dois pais: o pai real do desejo materno, e o pai morto do desejo do sujeito. Será a distância entre o dois que permitirá que o sujeito se inscreva no simbólico: o desejo do pai morto terá de ser recalcado, guardado no inconsciente, para que possa se inscrever sem que o sujeito tenha que realizá-lo no ato real. Assim, o pai funciona como uma Lei. Lei que se apóia no papel do pai, mas que também difere de sua pessoa. Essa lei é chamada, então, de NOME-DO-PAI: NOME porque não é a pessoa em si; PAI, porque é autoridade, lei que rompe com o absoluto do Outro da criança. A mãe, que era para a criança outro onipotente (OUTRO – Grande Outro), deixará de sê-lo, para se apresentar para a criança como um a quem falta. Este Grande Outro, a criança ainda buscará, mas em outro lugar. Em princípio neste pai, que de início pensa SER a lei, e depois nos objetos da cultura, quando percebe que também este pai é regido por uma ordem que lhe é alheia.
A articulação dessa Lei com o desejo é feita pela linguagem. Num primeiro momento de inserção na linguagem, Freud descreve o jogo de uma criança, o qual chamou de “Fort-Da”: Ela brincava com um carretel, que fazia aparecer e desaparecer, simbolizando a falta da mãe. Ao jogar, ela nomeava a ausência (Da) e presença (Fort) da mãe, tomando no simbólico o controle da ausência e presença do outro (ver conceito de frustração), o que aliviava a angústia do abandono. G. Roza explica:

A partir do momento no qual a criança formou o seu eu segundo a imagem do outro, ela vai, pelo ingresso na ordem simbólica, produzir uma transformação no objeto através da linguagem. O Fort-Da é a descrição que Freud nos oferece desse momento. O objeto é desnaturalizado e adquire a função de signo; em seguida ela passa para o plano da linguagem e a partir de então a palavra passa a ser mais importante que o objeto.

E citando Lacan:

A palavra é essa roda de moinho por onde incessantemente o desejo humano se mediatiza, entrando no sistema de linguagem.

Mas, quando é só da falta da mãe que se trata, a linguagem é apenas uma oposição de significantes (Fort x Da). É no momento da entrada do PAI, e com o recalque do desejo de morte dele, que o sujeito ingressará na ordem simbólica definitivamente.
O gozo incestuoso (Gozo Incestuoso com o Grande Outro: é incestuoso porque é com o Grande Outro e é gozo porque é desejo de união absoluta, desejo do bem supremo, mítico e impossível de se realizar) será interdito e no lugar do desejo aparecerá o símbolo.
O que este recalque provoca é uma clivagem do sujeito. A partir daí ele será dois: um consciente, o EU e um Inconsciente, o SUJEITO. O desejo pertencerá a essa ordem inconsciente, pois sendo absoluto e incestuoso, é proibido ao sujeito consciente. A esse inconsciente o sujeito é submisso, sendo regido pelo seu desejo sem que o saiba. Garcia Rosa fala disso muito bem, contando a história do escravo que levava gravado no seu couro cabeludo uma mensagem, a qual desconhecia e que anunciava a própria morte. Tal como o escravo, o EU desconhece os desejos do sujeito, os quais determinam o seu destino.
Com a clivagem da subjetividade, o desejo inconsciente falará na voz do Outro, alheio àquele EU consciente. O Outro será o lugar do código, por cuja voz o desejo proibido poderá ser veiculado. Porém, fará isso atropelando a voz cotidiana do EU (Freud mostra como os atos falhos, os sintomas e os sonhos são as verdadeiras manifestações do desejo inconsciente, os quais, ao serem expressos na forma da linguagem, encontram sua realização). De modo que, a palavra diária, que serve para tamponar a falta e ocultar o desejo proibido, servirá ao mesmo tempo para fazê-lo aparecer.
Por não ser TODA, a palavra falha no seu intento tamponador. E quando falha, o SUJEITO fala, o DESEJO fala. Mas ao falar, fica para sempre insatisfeito. Por quê? Porque é linguagem, e se a palavra fala o desejo, ele fala também a falta. J. D. Nasio explica bem isso:

O desejo nunca será satisfeito, pela simples razão de que falamos. E, enquanto falamos, enquanto estivermos imersos no mundo simbólico, enquanto pertencermos a esse universo em que tudo assume mil e um sentidos, jamais chegaremos à plena satisfação do desejo, porque, daqui até a satisfação plena, estende-se um campo infinito, constituído de mil e um labirintos. Já que falo, basta que, no caminho de meu desejo, eu enuncie uma palavra ou execute um ato, inclusive o mais autêntico, para esbarrar imediatamente numa multidão de equívocos, na origem de todos os males entendidos possíveis. Uma vez dita a palavra, ou executado o ato, o caminho para a satisfação torna a se abrir. Aproximamo-nos do objetivo, praticamos um ato na vida, e um outro caminho volta a se abrir.

Mas, Nasio também diz:

          Onde o desejo não alcança seu objetivo, isto é, onde o desejo fracassa, surge uma criação positiva, coloca-se um ato criador. Eis que o desejo torna-se a grande aventura humana! Suportar a sua insatisfação é o preço que ele próprio se impõe. Suportar a sua insatisfação é o preço que se paga por uma realização possível.
Da onipotência da satisfação, o sujeito passa para a possibilidade da realização.
Na busca do elo perdido, o homem se aventura a relacionar-se. Tudo que encontra, porém, é a incerteza, a falta de garantias. De nada adiante reeditar o Grande Outro, pois ele não pode oferecer o Bem Supremo. Entregar-se a esse Outro é o que ele tenta fazer, sustentando ainda a ilusão de que se tudo lhe der, correspondendo ao que imagina ser esperado dele, do Outro tudo terá. Ou seja, sendo ele tudo o que o Outro espera, só para ele o Outro existirá também.
Pura repetição infantil, em que o sujeito ansiava pelo puro reconhecimento de seu desejo.
Mas quem não quer ser reconhecido? Entretanto, será apenas no suporte da insatisfação que certo reconhecimento será possível ao desejo e ao sujeito: se antes via apenas o Outro, e, portanto a si mesmo, agora deve ver o outro, aquele que desvia os olhares do Outro e dele mesmo, fazendo-se conhecedor de uma falta que não se completa nunca. Ao abrir Mão do reconhecimento absoluto, o sujeito ingressa numa outra via: a da possibilidade de existir, pois de modo diverso, o reconhecimento de um implicaria a morte do outro. Agora não. Desfaz-se a equação:

ONIPOTÊNCIA (OUTRO) / IMPOTÊNCIA (EU)

E constrói-se a fórmula:

IMPOSSIBILIDADE / POSSIBILIDADE

           De ambas as partes serem reconhecidas. É a viabilização de certa realização, de certo reconhecimento, não exclusivo, não todo, não sempre, mas nem por isso fadado ao nunca.
Essa aventura: no encontro com o outro (semelhante) o encontro dos olhares. Olhares que ora se apaixonam, ora se desiludem. Olhares de desejo, mas olhares de falta.
E é assim que, aventurando-se na falta, o sujeito parte em busca de algo além. E para além, é o mundo que se descortina, são os horizontes que se ampliam, é a vida que se abre para a criação.

CAIXA PRETA Roberto Lanza
17/02/2015