Eu sei quem eu sou. Passo a receita para quem
se interessar.
Sem possibilidade de precisão,
mas possivelmente quando eu teria entre cinco e seis anos
de idade, ocorreu-me um fato relevante na minha historia de vida, durante a
colheita de jabuticabas num pomar pertencente à um fazendeiro nosso
conhecido.
Eu estava acompanhado de minha família, juntamente com outros familiares
vizinhos e dentro do pomar tirei os sapatos para subir em um pé de jabuticaba.
De pé em pé fui colhendo a fruta e, ao mesmo tempo, apalpando o mundo, mapeando
no meu cérebro sabores e outros fenômenos indispensáveis pára a configuração da
minha futura existência, semelhante a uma pequena peça de um mosaico.
Contagiado pelo o Dom da vida, fui sendo invadido por uma
sensação de euforia, de liberdade inerente à existência;
Desprovido de percepção da realidade, fui me afastando do grupo de
familiares, permanecendo bastante distraído por determinado tempo.
Quando acordei para a realidade, com o dia já escurecendo, eu me
encontrava sozinho e fui tomado de muita aflição, gritei pela minha mãe, mas
foi em vão. Desci do pé de jabuticaba apanhei os meus sapatos, mas não conseguia
caminhar descalço naquele solo cheio gravetos perfurantes. Gritei por socorro
novamente, mas foi em vão.
De repente, olhei para as fôrmas dos sapatos e simultaneamente a formas
dos meus pés e o milagre aconteceu. Consegui articular o encaixe dos pés pela
percepção da forma de cada pé com as fôrmas de cada sapato, encontrando a
solução. Calcei os sapatos sem dificuldades, o que antes não sabia fazer.
Sempre dependia de minha mãe para calçar os sapatos, por virgindade daquele
ato, cuja descoberta fui tomado por uma espécie de euforia e de libertação,
fato comprovado pela minha consciência, pois nunca mais dependi de minha
mãe para tal finalidade.
Acredito que tal evento foi um marco inicial para o penoso processo de
inserção na civilização, pois não me lembro de outros eventos similares naquela
idade. Certamente muitos outros eventos se manifestaram, mas estão arquivados
na minha “caixa- preta”, provavelmente de forma
inconsciente.
Lembro-me muito pouco da minha pequena infância, mas sei, de forma sintomática,
que não foi muito fácil o natural percurso de desvinculação dos laços afetivos
familiares com o mundo externo no qual fui inserido.
Ingressei-me no Grupo Escolar aos sete anos de idade. Aos poucos fui
aprendendo, também, como me preparar e vestir o uniforme, por iniciativa
própria, mas dominado por uma angustia inominável. Que bom que eu aprendi a me
preparar para o meu ingresso na civilização (afinal, não existe outro meio!),
mas, há um risco. Vejamos o que disse o Grande Pensador Rubens Alves: “Há escolas que são gaiolas e há
escolas que são asas”.
Por outro lado, considerava tudo uma obrigação sem sentido e
desagradável. Tomei até antipatia do banho e do uniforme escolar. Sentia-me conduzido
por algo misterioso e indesejado retirando-me do aconchego e da zona de
conforto.
Disso eu nada entendia. Nem tampouco na escola primária, como por
exemplo: a lógica da análise sintática da disciplina Língua Pátria. Aprendia no
decoreba. Quando passei a entender matemática dentro da sua lógica formal (pois
tinha facilidade), tudo melhorou para outras disciplinas. Interessante destacar
que: quem resolve um problema de matemática está focado no processo, sem se
preocupar com o resultado. Eis aí um paradigma para a importância da busca e da
indagação. O processo é sempre recorrente a valores já conhecidos, tais como:
tábuas aritméticas, princípios, axiomas, propriedades primitivas ou postulados
e outros princípios e valores em alta escala.
Na minha história singular, gostaria de destacar outros pequenos tópicos
que vivenciei no trajeto da minha infância para a adolescência, época onde as
tradições culturais, pelo menos, eram mais autênticas e mais assertivas..
Algumas vezes, ficava observando os urubus plainando no céu sem precisar
bater suas asas. A inveja me dominava e eu questionava de maneira egoística:
por que eu não possuo este privilégio? Será castigo de Deus?
E mais, ainda: naquela época sempre ficava fascinado, quando visitava o
alto das colinas ou das serras, observando o sol aparecer ou desaparecer na
linha do horizonte, até onde os meus olhos alcançavam.
Acreditava, com a minha ingênua imaginação, que ali era o inicio ou o
fim, mesmo com uma incrível admiração e natural beleza, permanecia lá,
alheio ao mundo e à deriva da minha imaginação, olhando o solo ressurgindo ao
se afastando aos poucos, e encontrando com as aureolas solar matutinas e
vespertinas Será que está começando um dia novo ou
um velho dia de novo?. Faz sentido para a natureza humana!
Apesar do ciclo vicioso ou ciclo virtuoso condicionante à percepção de
cada um de nós, eu buscava encontrar lógica para tais fenômenos, mas eu não
possuía alcance suficiente para compreendê-los. De maneira superficial,
conseguia perceber que o dia e a noite não podiam conviver juntos e que, por
outro lado, a constituição de um lar necessitava de um pai e de uma mãe
(indícios de polaridades para mim predominantes)..
Essa repetição cambiante, assim como outros fenômenos existenciais,
algumas vezes novo dia, todo irradiante e
iluminado parecia-me como o Dom da vida. Mas, outras vezes,
tudo parecia o velho dia de novo, se
repetindo. Essa inquietante estranheza, fruto da repetição, incomodava-me
bastante.
Acontece que a natureza sempre foi, é, e será assim de forma autônoma e
sem tomar qualquer tipo de deliberação, constantemente em processo de evolução
sem dar saltos, sempre indiferente à nossa opinião e contemplação. Afinal, por
que nos rebelamos com tão indiferença da natureza?
O principio da não indiferença ou do manancial de
diversidade de coisas. objetos e valores só existe para a humanidade.Tudo que é
antrópico não é natural e é tributário da linguagem humana...
Assim, parecia-me que cada conhecimento adquirido induzia-me a acreditar
que:
“Quanto mais visibilidade, maior é a invisibilidade” (pensamento
filosófico), em perfeita coerência com o que dizia o filósofo grego Sócrates: “Eu só sei que eu não sei”!
Torna-se oportuno, mais uma vez citar Rubens Alves::
“Há pessoas de visão perfeita que nada vêem... O ato de ver não é coisa
natural. Precisa ser aprendido [...] o que somos é o resultado de uma
história que fizemos – e que poderíamos ter feito de maneira diferente.”... e
se não poderíamos tê-la feito diferente, não podemos agora fazê-la?.
O tempo passou, eu cresci e entendi que o novo dia causava-me
alegria enquanto que o velho dia de novo era
uma repetição angustiante. Faz parte da vida.
Da mesma forma, o aumentar dos solos e o diminuir da intensidade da luz
solar não era de verdade, pois tal fenômeno sumia para mim enquanto surgia
para outros olhares que, em algum outro lugar, dividia comigo o ato mágico de
navegar pela vida.
Tratava-se, portanto, na verdade, de tudo que eu via era pelo singular e
puro fato de quem ainda não aprendera sobre certos limites.
Com o meu amadurecimento natural e pessoal, pude compreender que tudo se
tratava de compartilhar com nossos semelhantes uma maneira sutil de ritualizar
uma nova existência.
Trata-se de um fato de que temos sempre a opção de continuar
achando que a finitude dos horizontes da percepção seguem o pressuposto da
sentença “do berço ao túmulo”. E ainda, quando chegada
a hora, morrerão por si só.
Um importante conceito filosófico nos diz que: “nada nasce ou perece,
tudo que existe é uma mistura e separação de coisas já existentes”.
Faz sentido matar dentro de nós. Questão de espaço.. É que não
comportamos tudo. Não há espaço para tantos conhecimentos e sentimentos. E
quando insistimos em manter vivos certos sentimentos através de respiração
artificial, não há espaço para nascer nada de novo. Então temos que abrir o
baú dentro de nós: mágoas, dores – velhas ou novas moções
empoeiradas, vícios humanos, escolhas erradas, ferimentos mantidos
sangrando, decepções, conceitos obliterados, amores infelizes, imagens
amareladas, relacionamentos passados, tristezas, amarguras, pessoas perdidas, etc..
É própria dor de existir que morde a vida e sopra a ferida da existência.
Há dentro do ser humano um sentimento profundo de perda de algo precioso
e um forte vinculo que caracteriza uma união e, ao mesmo tempo, uma interdição
como se a articulação existencial do um com o outro não existisse como
separação.
No fundo uma anulação da identidade própria dotada de um complemento,
bloqueando uma alteridade feliz e desejo de amor e de sexualidade.
Mas, na verdade, isso significa manter no nosso âmago tudo - até o
lixo que arquivamos em nossa “caixa preta” cada vez
mais abarrotada de arquivos que crescem e crescem engessando a nossa vida -
que, na verdade, não passam de arquivos mortos. É isso! Ou então encaramos a
fera e aprendemos a matá-la.
Mas, o que deverá morrer em mim hoje? Essa é a pergunta que a fera
sugere para começar.
E eu, com a experiência vivencial observadora, permiti-me
acrescentar: não basta escolher dentro de nós o que deve morrer e em
seguida matar. É preciso enterrar. Assim, eu passei a ver o mundo de outra
maneira e não foi o mundo que mudou, fui eu.
Acontece que os nossos desígnios conscientes não são capazes de elucidar
os enigmas do nosso mundo subterrâneos cheios de vastas emoções e de
pensamentos imperfeitos. Por capricho do destino do humano, condenado a ter
consciência de si mesmo, é um ser subvertido pela verdade do desejo inconsciente
e representado pela ordem simbólica. Somos “plugados “ demais às nossas
tradições cultuais, principalmente, do nosso abençoado berço.
E por aí vai... A lista é individual e cada um tem a sua. O que é
comum a todos é a responsabilidade de, interiormente, exterminar, dar fim ao
que é ruim para que algo novo e bom possa nascer.
É fácil? Não mesmo! Matar internamente não é simples
desejar, é mudança de atitude. No entanto, para mudar comportamentos de
forma permanente, é necessário mudar primeiramente as concepções que os
fundamentam. No entanto, Infelizmente, no ser humano “há um saber que
convence, mas não converte”.
Porque às vezes o que nos fez mal já está pra lá de morto, mas
mantemos mumificado dentro de nós, para usarmos como referencial, para não
esquecermos de que sofremos para não cairmos de novo nas mesmas armadilhas.
Outro engano: nada é igual nunca. Dores embalsamadas não servem
como exemplo, nem protegem, só paralisam.
Não há fórmula. Não há bulas. A única maneira de viver é permitir que
a vida nasça e morra e de novo nasça, tantas vezes quanto forem necessárias.
Portanto, para abrir os espaços é necessário fazermo-nos perguntas. E uma
vez identificado o que não é bom e não nos serve mais, devemos dar-lhe a morte.
Em seguida enterremos nosso morto, choremos um pouco, e, cumprido o ritual,
vistamo-nos com esmero para esperar. Afinal, viver é inventar a vida. Algo bom estará nascendo.
E olhando da janela da nossa “caixa preta” para o
horizonte que parece ser o fim, mas é também o princípio, podemos
considerar: “não somos nada, o que buscamos é tudo”. (Rubens
Alves).
Também, a partir da
reflexão de Nietzsche é possível pensar nas várias
maneiras de exercermos a nossa liberdade, mesmo que para isso seja necessário
nos perdermos. A grande sabedoria está no saber perder-se a si mesmo e em
seguida buscar o caminho do reencontro consigo mesmo: "Uma vez
que se tenha encontrado a si mesmo é preciso saber, de tempo em tempo perder-se
e depois reencontrar-se, pressuposto que se seja um
pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma
pessoa". Afinal, viver é inventar o dia por si só
Com base na reflexão acima, acrescento eu: o sentido proposto por
Nietzsche para tal pessoa, não se trata de uma pessoa qualquer encontrável no
mundo exterior, trata-se de um outro de mim mesmo ao qual sou
mais apegado, mas que não me completa nunca.
Para
concluir:
“Há um tempo em que é preciso abandonar
as roupas
usadas, que já tem a forma do
nosso corpo, e esquecer
os velhos caminhos, que
nos levam sempre
aos mesmos lugares. É o tempo da
travessia:
e, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado,
para sempre, à margem de nós
mesmos.”
Fernando Pessoa
CAIXA PRETA - Roberto
Lanza
Janeiro de 2015