Gostaria de repassar-lhes, literalmente, um artigo de autoria da Psicóloga Deborah Maria Michielini, publicado na revista CENÁRIO - Psicanálise e Cultura, edição 05/1996, do GREP - Grupo de Estudos Psicanalíticos de Belo Horizonte. O assunto é um pouco longo, mas vale a pena ler por se tratar de uma questão fundamental para quem se interessa em conhecer-se melhor. .
DESEJO HUMANO
Quando as pessoas procuram por uma psicoterapia, é comum que se descubra por trás de seu sofrimento uma dificuldade em relação, a saber, sobre o próprio desejo: até onde agem de acordo com o seu desejo, e até onde o fazem de acordo com o desejo do outro?
A angústia por não se saber mais a distância entre o próprio desejo e o desejo do outro é um dos pivôs na análise do sujeito, que anseia por seguir um caminho no qual não se encontre tão à mercê do outro.
Mas onde se inicia esta história do desejo? Qual o seu papel na história do sujeito? E qual é, exatamente, o fator de angústia que essa questão desencadeia?
O início
Para Freud, a porta para a emergência do desejo se abre a partir da primeira experiência de satisfação do infans: após a primeira mamada, uma imagem perceptiva do objeto provedor do alimento (no caso o seio) permanece gravada na memória do recém-nascido. Quando da segunda emergência da necessidade, ainda incapaz de realizar uma ação específica que lhe resolva a tensão interna, o bebê investirá nessa imagem mnêmica (memória), alucinando o seio e a satisfação da necessidade. No reaparecimento da percepção, estabelece-se o desejo.
O que se pode pensar a partir daí é que o desejo surge de uma falta, apoiada numa experiência de satisfação. Fosse apenas uma necessidade nesse momento, um objeto alucinado não resolveria a questão. Trata-se de desejo porque se realiza através de uma fantasia.
Vemos que o desejo não é algo natural; afasta-se da necessidade, impondo-se por uma falta numa relação com o outro. E se por um lado ele busca um objeto, o faz diferentemente da necessidade, orientando-se por sinais que constitui o fantasma (“encenação imaginária em que o indivíduo está presente e que figura, de modo mais ou menos deformado na realização de um desejo”).
Numa referência à noção de desejo na filosofia de Hegel, Garcia Rosa (1988) vai dizer que o desejo, por ser não natural, e que só outro desejo teria essa característica. O desejo, portanto, seria desejo de desejo; desejo do desejo do outro, nas palavras de Lacan, também citado por Garcia Roza.
A relação é sempre com o outro...
A cria é indigente, incapaz de se bastar. Para que sobreviva, carece de um OUTRO Materno (Grande OUTRO). É ele que atende o seu apelo urgente, preenchendo lhe a falta.
Quão onipotente não é esse Outro...
A criança chora, a mãe tem para dar.
No seu dar, a compreensão de um apelo.
Na interpretação do apelo, a introdução na linguagem.
Na introdução da linguagem, a criação da demanda.
Na criação da demanda, a viabilização do desejo.
Mas... Quando a criança chora, quem saberá exatamente do que se trata? Pois digo que é só no imaginário (Registro do engodo e da identificação) que essa relação pode-se dar. Somente no imaginário materno corresponde ao lugar onipotente de saber do desejo do outro. Ao choro do infans, a mãe responde: “É de fome? É de frio? É de dor?”, porque assim espera que seja. A sua falta torna-se, então, a fala do filho, o seu desejo, o desejo do filho.
Neste momento, mãe e filho formam uma mônada, uma célula só, na fusão, o desejo confuso do bebê é espelhado no outro e só assim pode ser reconhecido e atendido. Uma sintonia perfeita (?) mãe-bebê, num mundo onde nada mais além parece existir. Cada um ocupa o lugar daquilo que completa o outro, preenchendo o vazio deixado pela falta original.
Essa relação, apesar de imaginária, é necessária para que os desejos se inscrevam, pois não há possibilidade da existência da criança sem o olhar desejante da mãe.
É no reconhecimento da cria enquanto FILHO, o qual carece do outro enquanto MÃE, que é possível a estruturação de um sujeito humano. É o olhar estruturante, se sobrepondo ao puro instinto materno (Elizabeth Badinter, em seu livro o Mito do Amor Materno mostra como o instinto materno não é algo que parte do ser humano, mas que se constrói durante a própria história da humanidade. Trata-se de um amor conquistado e não dado pela espécie, como no caso dos outros animais). Aquele que é FILHO, ele precisa ser investido libidinalmente, ou seja, ele demanda amor. Mas, a demanda só é de amor porque a mãe assim reconhece. Na falta desse olhar apaixonado, não se estrutura um homem cria-se apenas um ser biológico. A cria carece de um envoltório libidinal. Garcia Roza (1985), citando Lacan, diz que, tal como o pinto rompe a casca do ovo e perde, não somente a mãe, mas a membrana que o protegia, a criança também, na hora do parto, não perde a mãe, mas uma parte de si mesma. E diz ainda Lacan: “Rompendo a casca, faz-se o homem, mas também a omelete”, ou seja, se este ser que nasce não for investido por um envoltório erógeno imaginário, ele será só um ovo e se esparramará, movido pelo puro instinto, sem uma forma humana.
Os limites corporais que a mãe designa à criança impedem que ela sucumba a um Real cruento o qual não pode ser simbolizado totalmente. Penso o Real como um registro da ordem do inominável, no qual o sujeito encontraria saída para a vivência do desamparo. Como bem observou R. Spitz (1988) nos casos de crianças institucionalizadas, sem essa moldura libidinal, mesmo supridas todas as necessidades, essas crianças entravam num estado de marasmo, o qual denominou Síndrome do Hospitalismo. Do que elas careciam? Do desejo do outro, do olhar, do toque sedutor que erotiza e livra o ser humano do puro estado natural, animal, biólogo.
O desejo desse primeiro momento imaginário, entretanto, não reconhece ainda como tal. Aquela citação Lacaniana, “O desejo é desejo de desejo do outro”, indica que é numa relação especular, por oposição ao outro, que o sujeito saberá do seu desejo, ou seja, a partir do desejo do outro que se lhe impõe. O outro funciona como um espelho, que lhe devolve a própria imagem. A partir dessa relação espelhada, a criança não é mais só uma massa esparramada, como diz G. Gabas (1980), explicando a fórmula do momento narcísico no qual a criança se encontra:
DESEJO / SUPORTE
A criança toma a si mesma como suporte, mas é uma estrutura mediata: o outro modela o seu desejo. G. Gabas explica que esse duplo narcísico exige do infans ser dois para ser único. Tem que ser ele mesmo e o objeto. Neste momento, o sujeito e o desejo ainda não existem como tais. Terá de haver uma clivagem para que se possa sair dessa relação onde o sujeito se alterna no outro se perdendo de si mesmo e do seu desejo. Tem-se que sair, pois tal como no mito de narciso, que se precipitou nas águas apaixonado pela própria imagem refletida, o destino do sujeito apaixonado pelo Outro de si mesmo é a morte. E essa díade só se poderá romper com a entrada de um terceiro elemento que intervém desviando os olhares da contemplação. Sem isso não se torna possível a saída da relação imaginária e a célula narcísica se fecha, abortando um SUJEITO QUE AINDA NÃO É sendo ele ainda um esboço do EU. E é pela via do Simbólico (´”O simbólico faz do homem um animal fundamentalmente regido, subvertido pela linguagem, o que determina as formas de seu vínculo social e suas escolhas sexuadas”) que a célula há de se abrir, seguindo a trilha da linguagem.
Esse simbólico, entretanto, não é algo que só agora aparecerá. Ele já está presente desde sempre, sendo que somente por este tempo é que a criança se dá conta dele. É que na célula narcísica há um furo, localizado na mãe e no seu desejo. Na falta, o prenúncio do simbólico. (Observação minha: Segundo Lacan a palavra mata a coisa e coloca em seu lugar o símbolo, criando o fantasma da ilusão de completude na sexualidade humana).
Vejamos: No idílio da completude que a relação imaginária oferecia, a falta insistia em se inscrever. Aquele filho do desejo nasceu de um ideal dos pais. Nascido de um ideal, ele será sempre o filho da desilusão, pois nunca corresponderá à expectativa nele projetada. Exatamente por isso, o universo da mãe não será preenchido só pelo filho, havendo algo mais que ela buscará alhures. A falta se inscreve, então, também para a criança, pois nem ela tem o outro a tempo e a hora de sua necessidade, como esse outro também não a tem como objeto exclusivo de desejo; o que é uma só coisa: Só se pode atender a tempo e a hora se não se tem mais nada a desejar.
Assim, a criança só tem sua demanda atendida parcialmente: em algum momento a mãe falha na interpretação de seu choro. É como se um ruído, de repente, penetrasse na sintonia perfeita das estações “Mãe-Bebê”, uma espécie de linha cruzada, uma interferência externa que prejudica a comunicação: Mesmo que um insista em ser ouvido, ou o outro insista em atender, uma terceira voz se sobrepõe, impedindo a compreensão. Com o ruído, algo se perde.
O seio alucinado daquele primeiro momento de emergência do desejo seria o representante desse algo perdido, um elo perdido, que para a criança é como um objeto que ela na verdade nunca teve, mas pensa ter perdido. Uma falta primordial, protótipo da angústia e da saudade
É apresentado a seguir o poema "O eu profundo e os outros eus" , de Fernando Pessoa, Rio de Janeiro, Editora Nova Fontreira.
É apresentado a seguir o poema "O eu profundo e os outros eus" , de Fernando Pessoa, Rio de Janeiro, Editora Nova Fontreira.
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga o cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei por que, uma angústia recente
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Essa “Pessoa misteriosamente minha” é na verdade o que Lacan chama de objeto causa do desejo: objeto que é uma falta, falta que não é do outro, mas do próprio ser. Falta a partir da qual emergirá o desejo. Desejo que, caracterizado pela “presença de uma ausência” é a “nostalgia do objeto perdido”, nas palavras de Garcia Roza (1988).
Uma ausência e uma perda instaurada definitivamente por aquele ruído que é o simbólico, ou seja, tanto a falta da mãe, a qual a impede de “ouvir” com perfeição o apelo da criança, quanto à interferência da voz do pai, efetivada justamente pela mãe que o busca para além do filho.
O pai funcionará como aquele que é a razão da exclusão do sujeito no desejo da mãe. (Tal como a MÃE é função de maternagem, PAI também deve ser entendido como função). Esse pai causará o desequilíbrio na homeostase da díade, o qual terá de ser inscrito para a criança, simbolizado. G. Gabas (1980) nos diz que, neste momento, o pai intervém no desejo incestuoso, e a sua morte é desejada. Mas o pai desejado morto é o pai do desejo da mãe, e o pai real; entretanto, o pai independe da cria para existir ou não no desejo da mãe, e o sujeito acaba tendo que se encontrar com dois pais: o pai real do desejo materno, e o pai morto do desejo do sujeito. Será a distância entre o dois que permitirá que o sujeito se inscreva no simbólico: o desejo do pai morto terá de ser recalcado, guardado no inconsciente, para que possa se inscrever sem que o sujeito tenha que realizá-lo no ato real. Assim, o pai funciona como uma Lei. Lei que se apóia no papel do pai, mas que também difere de sua pessoa. Essa lei é chamada, então, de NOME-DO-PAI: NOME porque não é a pessoa em si; PAI, porque é autoridade, lei que rompe com o absoluto do Outro da criança. A mãe, que era para a criança outro onipotente (OUTRO – Grande Outro), deixará de sê-lo, para se apresentar para a criança como um a quem falta. Este Grande Outro, a criança ainda buscará, mas em outro lugar. Em princípio neste pai, que de início pensa SER a lei, e depois nos objetos da cultura, quando percebe que também este pai é regido por uma ordem que lhe é alheia.
A articulação dessa Lei com o desejo é feita pela linguagem. Num primeiro momento de inserção na linguagem, Freud descreve o jogo de uma criança, o qual chamou de “Fort-Da”: Ela brincava com um carretel, que fazia aparecer e desaparecer, simbolizando a falta da mãe. Ao jogar, ela nomeava a ausência (Da) e presença (Fort) da mãe, tomando no simbólico o controle da ausência e presença do outro (ver conceito de frustração), o que aliviava a angústia do abandono. G. Roza explica:
A partir do momento no qual a criança formou o seu eu segundo a imagem do outro, ela vai, pelo ingresso na ordem simbólica, produzir uma transformação no objeto através da linguagem. O Fort-Da é a descrição que Freud nos oferece desse momento. O objeto é desnaturalizado e adquire a função de signo; em seguida ela passa para o plano da linguagem e a partir de então a palavra passa a ser mais importante que o objeto.
E citando Lacan:
A palavra é essa roda de moinho por onde incessantemente o desejo humano se mediatiza, entrando no sistema de linguagem.
Mas, quando é só da falta da mãe que se trata, a linguagem é apenas uma oposição de significantes (Fort x Da). É no momento da entrada do PAI, e com o recalque do desejo de morte dele, que o sujeito ingressará na ordem simbólica definitivamente.
O gozo incestuoso (Gozo Incestuoso com o Grande Outro: é incestuoso porque é com o Grande Outro e é gozo porque é desejo de união absoluta, desejo do bem supremo, mítico e impossível de se realizar) será interdito e no lugar do desejo aparecerá o símbolo.
O que este recalque provoca é uma clivagem do sujeito. A partir daí ele será dois: um consciente, o EU e um Inconsciente, o SUJEITO. O desejo pertencerá a essa ordem inconsciente, pois sendo absoluto e incestuoso, é proibido ao sujeito consciente. A esse inconsciente o sujeito é submisso, sendo regido pelo seu desejo sem que o saiba. Garcia Rosa fala disso muito bem, contando a história do escravo que levava gravado no seu couro cabeludo uma mensagem, a qual desconhecia e que anunciava a própria morte. Tal como o escravo, o EU desconhece os desejos do sujeito, os quais determinam o seu destino.
Com a clivagem da subjetividade, o desejo inconsciente falará na voz do Outro, alheio àquele EU consciente. O Outro será o lugar do código, por cuja voz o desejo proibido poderá ser veiculado. Porém, fará isso atropelando a voz cotidiana do EU (Freud mostra como os atos falhos, os sintomas e os sonhos são as verdadeiras manifestações do desejo inconsciente, os quais, ao serem expressos na forma da linguagem, encontram sua realização). De modo que, a palavra diária, que serve para tamponar a falta e ocultar o desejo proibido, servirá ao mesmo tempo para fazê-lo aparecer.
Por não ser TODA, a palavra falha no seu intento tamponador. E quando falha, o SUJEITO fala, o DESEJO fala. Mas ao falar, fica para sempre insatisfeito. Por quê? Porque é linguagem, e se a palavra fala o desejo, ele fala também a falta. J. D. Nasio explica bem isso:
O desejo nunca será satisfeito, pela simples razão de que falamos. E, enquanto falamos, enquanto estivermos imersos no mundo simbólico, enquanto pertencermos a esse universo em que tudo assume mil e um sentidos, jamais chegaremos à plena satisfação do desejo, porque, daqui até a satisfação plena, estende-se um campo infinito, constituído de mil e um labirintos. Já que falo, basta que, no caminho de meu desejo, eu enuncie uma palavra ou execute um ato, inclusive o mais autêntico, para esbarrar imediatamente numa multidão de equívocos, na origem de todos os males entendidos possíveis. Uma vez dita a palavra, ou executado o ato, o caminho para a satisfação torna a se abrir. Aproximamo-nos do objetivo, praticamos um ato na vida, e um outro caminho volta a se abrir.
Mas, Nasio também diz:
Onde o desejo não alcança seu objetivo, isto é, onde o desejo fracassa, surge uma criação positiva, coloca-se um ato criador. Eis que o desejo torna-se a grande aventura humana! Suportar a sua insatisfação é o preço que ele próprio se impõe. Suportar a sua insatisfação é o preço que se paga por uma realização possível.
Da onipotência da satisfação, o sujeito passa para a possibilidade da realização.
Na busca do elo perdido, o homem se aventura a relacionar-se. Tudo que encontra, porém, é a incerteza, a falta de garantias. De nada adiante reeditar o Grande Outro, pois ele não pode oferecer o Bem Supremo. Entregar-se a esse Outro é o que ele tenta fazer, sustentando ainda a ilusão de que se tudo lhe der, correspondendo ao que imagina ser esperado dele, do Outro tudo terá. Ou seja, sendo ele tudo o que o Outro espera, só para ele o Outro existirá também.
Pura repetição infantil, em que o sujeito ansiava pelo puro reconhecimento de seu desejo.
Mas quem não quer ser reconhecido? Entretanto, será apenas no suporte da insatisfação que certo reconhecimento será possível ao desejo e ao sujeito: se antes via apenas o Outro, e, portanto a si mesmo, agora deve ver o outro, aquele que desvia os olhares do Outro e dele mesmo, fazendo-se conhecedor de uma falta que não se completa nunca. Ao abrir Mão do reconhecimento absoluto, o sujeito ingressa numa outra via: a da possibilidade de existir, pois de modo diverso, o reconhecimento de um implicaria a morte do outro. Agora não. Desfaz-se a equação:
ONIPOTÊNCIA (OUTRO) / IMPOTÊNCIA (EU)
E constrói-se a fórmula:
IMPOSSIBILIDADE / POSSIBILIDADE
De ambas as partes serem reconhecidas. É a viabilização de certa realização, de certo reconhecimento, não exclusivo, não todo, não sempre, mas nem por isso fadado ao nunca.
Essa aventura: no encontro com o outro (semelhante) o encontro dos olhares. Olhares que ora se apaixonam, ora se desiludem. Olhares de desejo, mas olhares de falta.
E é assim que, aventurando-se na falta, o sujeito parte em busca de algo além. E para além, é o mundo que se descortina, são os horizontes que se ampliam, é a vida que se abre para a criação.
CAIXA PRETA Roberto Lanza
17/02/2015
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